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O trem e depois o cavalo para chegar aos alunos, dormindo em uma casa desconhecida e enfrentando o medo do escuro. Anos depois, a decisão de fundar sua própria escola. O ônibus lotado de trabalhadores e as várias viagens até chegar na escola erguida sob chão de barro batido. Valeu a pena pelas crianças. Assumir o projeto da Igreja e ter o desafio de mudar um método falho na alfabetização de adultos, sem ainda ter o diploma na área. Não dava mais para fugir do destino. Três histórias, três perfis, três gerações de pedagogas, cada uma com um ensinamento. Começando o texto assim fica mais fácil entender a escolha de “Memórias, Histórias e Narrativas em Formação de Professores” como nome para o encontro do dia 30 de maio. Organizado pelos docentes Ana Paula Lanter e Marcelo Mocarzel, a palestra reuniu duas turmas do curso de Pedagogia em uma enriquecedora troca de experiências.

 

À frente da sala cheia de universitários, estiveram Hedda, fundadora do colégio Maia Vinagre (além de avó de Marcelo), Mabel, concursada da Secretaria Municipal de Educação de Niterói, e Cristiane, aluna do Unilasalle-RJ e professora do Ágora. Essas são algumas de suas memórias, relatadas na segunda-feira:

Hedda Maia Vinagre Mocarzel

“Me formei em Barra do Piraí, em tempo de guerra. As professoras eram alemãs, só a de Português era brasileira. Mas eram pessoas inteligentíssimas. Esse foi o curso Normal. Aí começou a batalha para o magistério, tinha que fazer concurso. O primeiro lugar onde dei aula foi em uma escola de fazenda. Lidei com crianças com dificuldades financeiras, de aprendizagem, no vocabulário, crianças simples, mas que amavam a professora. Foi um aprendizado muito grande e estava só com 19 anos. Para chegar lá (ficava de segunda a sexta) eu tomava a extinta Rede Sul Mineira, de ferrovia. No meio do caminho eu saltava e tinha uma guarita onde morava o guarda-chaves. Lá ficava esperando o cavalo que o fazendeiro mandava, para completar o percurso de 3 km. A fazenda não tinha luz elétrica. Eu ia com prazer, mas tinha um medo de noite. A casa tinha 16 quartos e eles me davam sempre um lampião, mas pedia ‘Pelo amor de Deus moço, me dá uma vela, a chama do lampião é muito alta, fico com medo da minha sombra’. Olhava de baixo da cama para ver se não tinha cobra. Um dia pedi ao fazendeiro para colher umas jabuticabas do pé para as minhas crianças e tive a primeira tristeza da minha vida. O garoto caiu da árvore e quebrou o bracinho. Para mim foi uma dor imensa por ver aquela criança machucada por culpa minha”.   

“Formei família e para educar meus filhos decidi abrir uma escolinha para mim. E assim surgiu o Maia Vinagre que está aí até hoje. Os meus netos estudaram comigo e agora os meus bisnetos estão estudando também. A escola tem 60 anos. Encontro ex-alunos e eles sempre me abraçam, fico com uma alegria muito grande. A minha vida não foi em vão”.

 

Penha Mabel Farias do Nascimento

“A maioria dos colégios na minha época chamava os professores para trabalhar sem a carteira assinada. Aceitávamos pela experiência. Minha primeira foi em uma escola lá para dentro de Belford Roxo, chão batido, o barro vermelho. Pegava três ônibus para ir e três para voltar, um deles era cheio de cadernos junto com o pessoal de enxada na mão, picareta, galinhas... Dava aula em uma escola não legalizada. Tinha em torno de 40 alunos, um ventilador de teto, as cadeiras eram grudadas do fundo até o quadro e eles pulavam as mesas para poder sair. Mas eu queria, eu acreditava que o meu caminho era aquele e aprendi bastante. Fui confrontada na prática”.

“Depois fui trabalhar em escola privada de Nilópolis, aí já com a área de educação infantil, que marca a minha trajetória. Era 1990, a Constituição de 1988 recém-escrita já considerava criança como pessoa em desenvolvimento, mas ainda não tínhamos a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) posta. Havia uma estrutura física melhor, mas não era totalmente adequado. A diretora queria aplicar prova para criança de 4 anos, queria que elas decorassem números pares, ímpares, vizinhos e eu pensava, ainda sem o conhecimento teórico, ‘Não é possível que isso esteja certo’. Indo para o curso de Pedagogia levei esse questionamento: ‘Como a criança constrói o conhecimento?’ e percebi que estava certa. Elas têm muito a ensinar. Logo que cheguei em outro trabalho, na Umei (Unidade Municipal de Educação Infantil) do Morro da Cocada tocava pandeiro para cada bebê, eles mexiam a barriga, prestavam atenção. Um belo dia ia contar outra história relacionada ao relógio e levei o objeto. Quando mostrei aquele círculo no formato do pandeiro, um deles começou a batucar. Ou seja, fez uma associação, um ato mental”.

 

Cristiane Monteiro Bastos

“Ser professora é algo novo para mim, apesar da minha mãe sempre ter me falado que eu deveria ser professora, por ajudar meus amigos a estudar. Minha trajetória acadêmica começou na UFF, fiz licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais, mas nunca cogitei dar aula. No final de 2012 fui fazer um trabalho voluntário na Igreja, com alfabetização de adultos. Era uma pastoral que já existe há anos, a professora uma senhora de muito boa vontade, mas o que ela tinha dessa característica tinha em falta de didática na mesma quantidade. O método era infantilizador apesar da aluna mais nova ter 50 anos e a mais velha 84. Elas nunca eram alfabetizadas. Iniciei o trabalho em 2012, decidi estudar Paulo Freire, relembrar a licenciatura, e passei a criticar aos poucos, com carinho. A professora se aposentou, assumi e soube do programa do governo ‘Brasil Alfabetizado’. Fiquei de janeiro a setembro de 2013 tentando inscrever a turma neste projeto e consegui. Passei a ter um apoio financeiro, de material, lanche, além de apoio pedagógico, o que me deu uma luz. Não deu mais para fugir, decidi fazer uma nova graduação, em Pedagogia, e descobri o Unilasalle-RJ. Todas aquelas 14 alunas se formaram depois de oito meses e duas delas continuaram os estudos”.

“Tive outras experiências, passei pela Educação Infantil, apesar de não ser o que mais gosto, dei aula para crianças abastadas em escola com boa estrutura e vi que não era o meu perfil. Até que encontrei a linha montessoriana (entende a criança em sua autonomia) e me apaixonei. Hoje sonho em tentar utilizá-la na Educação de Jovens e Adultos”.

 

Ao término das falas, os alunos puderam fazer perguntas para o trio, e uma chamou a atenção: “Vivemos esta relação de amor e ódio, uma paixão pela sala de aula, mas tendo ao mesmo tempo um desânimo diante das dificuldades. Que melhorias vocês viram acontecer que mantiveram vocês?” Mabel citou a parada na rede municipal todas as quartas-feiras na parte da tarde, um momento para os professores refletirem e poderem ser vistos como mais do que “fazedores”. Lembrou ainda do terço, as quatro horas semanais para realizar cursos gratuitamente” e concluiu: “Não é impossível, eu pago minhas contas sendo pedagoga e tenho orgulho disso”.    

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