Em cartaz na Galeria La Salle, a “memória e o afeto que abrem portas para podermos sonhar”
Ao chegar na Galeria La Salle, Bê Sancho convida a um passeio. Logo de início, três obras apresentam figuras femininas negras. Em alusão às mães pretas, ao alicerce de muitas famílias brasileiras, elas estão ali para proteger todas as demais faces a que o público é apresentado na exposição. As mulheres são Tia Ciata, “essa baiana que migrou para o Rio de Janeiro e foi crucial para o nascimento do samba. Ela representa a mãe que acolhe a cultura popular, o sambista que era perseguido”; Yabá, “essa palavra em yorubá está relacionada à mãe, à avó, à proteção. Retrato ela em um díptico aberto, com uma fita vermelha ao meio, para remeter ao fato de que em toda favela há uma gota de sangue, há essa memória”; e Carolina Maria de Jesus, “autora de Quarto de Despejo, que guarda suas memórias do dia a dia na favela do Canindé (São Paulo). Nesse quadro eu descortino o livro, trago as palavras dela para a minha arte para que ela fale diretamente com o público”. O espectador é convidado a entrar em cada tela, mergulhar nas expressões fidedignas e, então, entender o nome da mostra: Utopia dos Afetos. “A memória e o afeto são portas para podermos sonhar e essa exposição fala sobre isso. Ela é baseada nas referências étnico-raciais, pois falo do meu lugar de artista e professor, que trabalha com jovens da Maré, do Morro do Estado. A partir da relação de afeto que estabeleço com eles eu construo uma narrativa”, explica Bê.
Nessa narrativa há espaço para o sonho de Carolina (“Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é”, dizem algumas de suas palavras, reproduzidas na tela de 60x50 cm, entre pinceladas de óleo, nanquim, intervenções de juta e papel), mas também para o sonho da menina, o suspiro pela boneca. No quadro Entre memórias, a criança aparece triste, por não poder ter a Emília. À cena se unem os versos de Bê Sancho: “A imagem partindo / Frágeis desejos não alcançados / A boneca à venda no shopping / Com piso de granito era só para ver / pelo lustroso vidro da vitrine”. Na narrativa cabe também outra face de menina, esta empoderada por ter atrás de si Marielle Franco, Dandara dos Palmares, Mãe Menininha dos Gantois, Carolina Maria de Jesus, Tereza de Benguela, Lélia Gonzales, Laudelina Campos de Melo, Esperança Garcia, Sueli Carneiro, Tia Ciata e “todas as Marias anônimas”. Apoiada sobre os ombros delas a personagem se torna Geledé, o poder feminino.
Entre os mais de 30 quadros há ainda curumins, na mata e vivendo sem ela; há os meninos do rio Guaíba (RS) que pensam no futuro, apesar das incertezas; há a criança à espera de afeto; há o menino com olhos caídos contemplando da laje os tiros, mas também o menino do Pelô, que cresce em meio a “batuques, memórias, histórias e sentidos sólidos de pertencimento”. Por vezes, o peso das ausências faz o visitante firmar os pés no chão, é quando a abordagem política parece saltar das obras. Mas também é feito o convite para a transcendência, seja a partir da fé (a cristã em diálogo com a de matriz africana) seja por meio da materialização da leveza. No centro do caminho cultural do Unilasalle-RJ, uma instalação cumpre esse papel, representando o “coração da utopia”. “Eu abordo muito essa dimensão do feminino, por meio da mãe, da avó, da terra, e isso, de certa forma, emerge desse elemento cenográfico. Eu busco aludir há uma árvore, ao baobá africano. Na minha utopia, a menina, a criança e a mulher rodam em volta dela protegidas pelas primaveras. Esse é o sonho com um mundo de flor, um mundo primaveril, que remete ainda à dimensão do circo, da magia. O coração é suave, é leve, é etéreo”, sintetiza Bê Sancho.
Nesse coração, esculturas de arame, fita crepe e tinta acrílica estão expostas em um pedestal, mas também levitam, presas ao teto. Elementos feitos com os mesmos materiais dialogam ainda com os quadros. Próximo à tela de Carolina Maria de Jesus, por exemplo, a pequena escultura de papel retrata um retirante. Ele faz alusão ao fato de Carolina ter migrado da comunidade rural em Sacramento (MG) onde nasceu para São Paulo. O retirante de Bê Sancho caminha tendo como chão não a terra, mas um livro, já que as letras se confundem com a história da autora de Quarto de Despejo. “Cada escultura foi pensada na perspectiva de ampliar a narrativa, buscando ultrapassar a dimensão bidimensional dos quadros”, explica o artista, “São elementos que convidam o visitante a pensar além da imagem. A pintura é a minha expressão maior, mas comecei a querer partir para a poesia, para a tridimensionalidade dos objetos e para o campo da escultura também”.